Apesar de contar com um marco legal vasto e avançado, o Brasil ainda é um país perigoso e violento para as crianças e os adolescentes. Muitas e diversas são as formas de violência a que estão submetidos e é importante conhecê-las. Ainda que as agressões físicas e verbais sejam a face mais conhecida da violência contra crianças e adolescentes, a negligência ou abandono, o tráfico de seres humanos – para fins de exploração sexual ou de seu trabalho, por exemplo -, o trabalho infantil e a violência institucional também atingem crianças e adolescentes brasileiros todos os dias, em todos os estados. 

Tipos de violência contra crianças e adolescentes
São formas de violência contra crianças e adolescentes:

i

Negligência e abandono: Trata-se das formas mais comuns de violência contra crianças e adolescentes. Caracterizada principalmente pela omissão dos responsáveis pela criança ou pelo adolescente em suas tarefas de prover o mínimo necessário para seu desenvolvimento, a negligência pode se manifestar de muitas formas, o que dificulta sua conceituação. É importante destacar que a falha dos responsáveis em alimentar, vestir adequadamente, medicar, educar e evitar acidentes de crianças e adolescentes só pode ser considerada negligência quando não é devida à carência e/ou escassez de recursos. Por sua vez, o abandono é uma forma severa de negligência

ii

Violência física: Definida pela Lei nº 13.431/2017 como a “ação infligida à criança ou ao adolescente que ofenda sua integridade ou saúde corporal ou que lhe cause sofrimento físico”, a violência física diz respeito ao uso da força física por um agente agressor adulto ou mais velho do que a vítima. Muitas vezes, o agente agressor é o próprio responsável pela vítima. A violência física pode ou não deixar marcas e, em casos extremos, pode levar à morte

iii

Violência psicológica: Segundo a Lei 13.431/2017, diz respeito a “condutas de discriminação, depreciação ou desrespeito em relação à criança ou ao adolescente mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, agressão verbal e xingamento, ridicularização, indiferença, exploração ou intimidação sistemática (bullying) que possa comprometer seu desenvolvimento psíquico ou emocional”; ato de alienação parental; ou “qualquer conduta que exponha a criança ou o adolescente, direta ou indiretamente, a crime violento contra membro de sua família ou de sua rede de apoio, independentemente do ambiente em que cometido, particularmente quando isto a torna testemunha”. Práticas online, como o cyberbullying, também estão incluídas

iv

Violência sexual: Definida pela Lei nº 13.431/2017 como “qualquer conduta que constranja a criança ou o adolescente a praticar ou presenciar conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, inclusive exposição do corpo em foto ou vídeo por meio eletrônico ou não”. Inclui formas de abuso e exploração online. Para mais detalhes sobre as diferentes formas de violência sexual contra crianças e adolescentes, clique aqui

v

Violência institucional: A Lei nº 13.431 traz uma definição genérica, segundo a qual trata-se de “violência praticada por instituição pública ou conveniada, inclusive quando gerar revitimização”. Uma definição mais precisa é fornecida pelo Decreto-Lei nº 9.603/2018, segundo o qual a violência institucional é aquela “praticada por agente público no desempenho de função pública, em instituição de qualquer natureza, por meio de atos comissivos ou omissivos que prejudiquem o atendimento à criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência”

vi

Trabalho infantil: Diz respeito ao trabalho exercido por pessoas que tenham menos da idade mínima permitida para trabalhar. No Brasil, a idade mínima para o trabalho, sob qualquer condição, é de 14 anos. Em seu art. 7º, a Constituição Federal veda o trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito anos e qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos

vii

Tráfico de crianças e adolescentes: O tráfico de seres humanos é definido pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em Especial Mulheres e Crianças, como “o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de […] exploração da prostituição […], trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos”

A violência sexual contra crianças e adolescentes pode ser classificada como abuso sexual ou exploração sexual.

Abuso sexual

O abuso sexual se refere à prática de relações sexuais contra crianças e adolescentes ou à utilização de crianças e adolescentes para fins sexuais para estimulação sexual do agente ou de terceiros, de modo presencial ou eletrônico. Trata-se da violência praticada contra crianças e adolescentes mediante a utilização de sua sexualidade no contexto de uma relação desigual de poder entre vítima e abusador. Importa dizer que o fato de que mesmo a prática sexual que não envolva o uso da força configura abuso sexual quando praticada com crianças e adolescentes.

Frequentemente, o abuso sexual não ocorre uma única vez, mas de forma reiterada e por meio de um “processo com fases em escalada, desde a sedução até o abuso propriamente dito, e que pode durar anos até a ocorrência de eventual conjunção carnal”, ocorrendo “em sua grande maioria, dentro de casa, no âmbito privado e sem testemunhas […] (e) envolve o vínculo afetivo entre o(a) agressor(a) e a vítima” (Instituto Alana & MPSP, 2020), como nos casos de abuso sexual intrafamiliar.

Contudo, o abuso sexual também pode ser do tipo extrafamiliar, praticado por pessoas em quem a criança ou o adolescente confiam (vizinhos, amigos da família, educadores, médicos e outros profissionais da saúde, líderes religiosos etc.). Há, ainda, casos de abuso em espaços institucionais de atenção à criança e ao adolescente, tais como unidades de saúde, escolas, instituições governamentais e não governamentais responsáveis por cuidar e proteger crianças e adolescentes, bem como aplicar medidas socioeducativas. Nesses casos, o abuso por ser perpetrado por funcionários ou por outras crianças e adolescentes atendidos (Childhood Brasil, 2020).

Vale pontuar, ainda, que o abuso sexual pode ocorrer com ou sem contato físico:

Abuso sexual com contato físico: Todo ato físico-genital que inclua “carícias nos órgãos genitais, tentativas de relações sexuais, masturbação, sexo oral, penetração vaginal e anal”. Vale destacar que “existe, no entanto, uma compreensão mais ampla de abuso sexual com contato físico que inclui […] beijos e toques em outras zonas corporais erógenas”. (Childhood Brasil, 2020a).

Abuso sexual sem contato físico: São formas de abuso sexual sem contato físico o assédio sexual (propostas de relações sexuais frequentemente baseadas na posição de poder do agente sobre a vítima); o abuso sexual verbal (conversas sobre atividades sexuais, com o intuito de despertar interesse ou chocar); telefonemas obscenos; o exibicionismo (ato de mostrar órgãos genitais ou se masturbar diante de crianças ou adolescentes); o voyeurismo (ato de observar atos ou órgãos sexuais de outras pessoas); o grooming, ou seja, o ato de conquista a confiança de uma criança ou um adolescente e chantageá-la/o por benefícios sexuais; e a exibição de material de conteúdo sexual para crianças e adolescentes. O abuso sexual online é uma das formas de abuso sexual sem contato físico, que ganhou destaque no contexto da pandemia, devido à exposição intensiva de crianças e adolescentes à internet e às mídias sociais nesse período. Assim como os demais tipos de abuso sem contato físico, ele pode culminar no abuso sexual com contato físico.
Exploração sexual
O conceito de “exploração sexual” diz respeito à prática de relações sexuais com crianças e adolescentes mediante o pagamento em dinheiro ou qualquer outro benefício. Ela pode ocorrer em contextos variados – no turismo, em rodovias, em regiões de grandes obras ou empreendimentos, nas ruas e em prostíbulos. Ela difere do abuso sexual, portanto, por envolver necessariamente uma moeda de troca. São subtipos da exploração sexual de crianças e adolescentes:
Exploração sexual de crianças e adolescentes (autônoma): Situação de prática de relações sexuais com crianças e adolescentes mediante pagamento em que o envolvimento com atividades sexuais ocorre como estratégia de sobrevivência para as vítimas, muitas delas não agenciadas e sem intermediários.
Exploração sexual de crianças e adolescentes agenciada: Ocorre quando a exploração sexual é intermediada por uma ou mais pessoas ou serviços, que cobram das crianças e dos adolescentes explorados parte da renda obtida mediante a prática de relações sexuais. Em muitos casos, as crianças e os adolescentes se tornam reféns dos agenciadores.
Produção/reprodução/exibição de material de conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes: Consiste nos atos de “produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou adolescente” (Instituto Alana & MPSP, 2020). Essa prática se tornou mais comum e foi facilitada pela ampliação do acesso à internet e abarca, ainda, a adulteração ou a montagem de recursos audiovisuais simulando a participação de crianças e adolescentes em prática sexuais.
Exploração sexual de crianças e adolescentes no contexto de viagens e do turismo: Refere-se a situações em que crianças e adolescentes são aliciados para práticas sexuais com viajantes estrangeiros ou de outras regiões do Brasil. No país, o turismo de negócios figura como o principal canal dessas violações.
Tráfico para fins de exploração sexual de crianças e adolescentes: Prática que envolve a cooptação, o aliciamento, o rapto, o intercâmbio, a transferência e a hospedagem da pessoa recrutada para essa finalidade. Quando envolve crianças e adolescentes, é frequente que “ocorra de forma disfarçada por agências de modelos, turismo, trabalho internacional, namoro/matrimônio, e, mais raramente, por agências de adoção internacional”. (Childhood Brasil, 2020).
Tipologia da violência sexual contra crianças e adolescentes
Por que a terminologia correta importa?

Apesar de haver definições legais para os crimes sexuais cometidos contra crianças e adolescentes, há também controvérsias e confusão a respeito dos termos adequados para classificar as diferentes formas de abuso e exploração sexual infantojuvenil. Abaixo são apontadas as principais controvérsias, a expressão mais adequada em cada caso e porque evitar expressões tradicionalmente usadas, mas cujo emprego vem sendo questionado e desaconselhado por especialistas.

Pedofilia X Abuso sexual – As palavras “pedofilia” e “pedófilo” não devem ser usadas para fazer referência a situações de abuso sexual e agressores sexuais de crianças e adolescentes, respectivamente. A pedofilia é um transtorno de personalidade que consta na Classificação Internacional de Doenças (CID) e nem todo/a pedófilo/a necessariamente abusa de crianças e adolescentes, a despeito de sua atração sexual por eles. Por outro lado, o abuso sexual é praticado por pessoas comuns, conhecidas das vítimas, que não correspondem aos estereótipos de “louco” e “monstro” usualmente associados à pedofilia.

Pornografia infantil X (Produção/reprodução/exibição de) Material de conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes – O primeiro termo deve ser evitado. A palavra “pornografia” é usada para descrever a exibição de relações sexuais consensuais entre adultos e se refere a uma prática cada vez mais normalizada e legítima em muitos países. Não se pode dizer que a exibição de imagens de práticas sexuais envolvendo crianças e adolescentes configure “pornografia infantil”, visto que, na realidade, trata-se de uma forma e de uma representação de abuso sexual infantojuvenil.

Prostituição infantil X Exploração sexual O primeiro termo deve ser evitado. A palavra “prostituição” só deve ser empregada em referência a adultos, pois ela implica algum grau de consentimento e corresponsabilidade por parte da criança e do adolescente que, na realidade, são vítimas de violência sexual. O uso da palavra “prostituição” para fazer referência a menores de 18 anos ignora que, mesmo na exploração sexual autônoma, a criança ou o adolescente não escolhe ser explorada/o, porque sequer tem idade para consentir com isso, sendo vítima da situação.

Turismo sexual infantojuvenil X Exploração sexual infantojuvenil no contexto de viagens e turismo – O primeiro termo deve ser evitado. Entre outras razões, ele pode sugerir que, de alguma forma, trata-se de uma forma legítima de turismo, além de minimizar a gravidade dessa situação, contribuindo para sua normalização. Finalmente, a exploração sexual não é praticada apenas por turistas, mas também por pessoas viajando a negócios, por exemplo.

Fonte: “Terminology Guidelines for the Protection of Children from Sexual Exploitation and Sexual Abuse”, Interagency Working Group on Sexual Exploitation of Children (2016)