Números da violência contra crianças e adolescentes
Os dados sobre as violências contra crianças e adolescentes no Brasil não são unificados, inexistindo um sistema que consolide e reúna todas as estatísticas relacionadas ao tema. Além disso, os dados sobre algumas formas de violência são escassos, o que dificulta o desenho de políticas de prevenção e enfrentamento. Outro obstáculo à adequada mensuração do fenômeno, e, consequentemente, ao desenho de medidas preventivas e repressivas, diz respeito ao fato de que as violências são subnotificadas – isto é, parcela pequena das violências ocorridas chega ao conhecimento das autoridades, seja por meio de boletins de ocorrência, seja por meio de ferramentas como o Disque 100.[1]
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No que diz respeito à violência física, os homicídios de crianças e adolescentes representam sua forma mais extrema. Segundo levantamento do Fundo das Nações Unidas pela Infância (UNICEF) sobre os 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança no Brasil, o número de homicídios de crianças, adolescentes e jovens de 10 a 19 anos mais do que dobrou entre 1990 e 2017, chegando a pouco menos de 12 mil registros anuais. De fato, dados do Departamento de Informática do Ministério da Saúde (Datasus) revelam que 6.941 pessoas de até 19 anos de idades foram vítimas de mortes violentas[2] no país em 2019, o que representou 16% de todas as vítimas. Deve-se destacar que aquele foi um ano de queda das mortes violentas em todo o país – nos cinco anos anteriores, entre 2014 e 2018, a média anual de mortes nessa faixa etária foi de 11.239, ou 31 crianças, adolescentes e jovens mortos de maneira violenta diariamente.
Contudo, nem toda violência física leva a vítima à morte e o número de agressões físicas é muito superior ao número de óbitos. Dados do Sinan do Ministério da Saúde indicam 62.537 notificações de violência física contra pessoas de até 19 anos em 2019, o que representou aumento de 5,7% em relação a 2018). Seis entre 10 crianças ou adolescentes vítimas de violência física eram do sexo feminino e 43% de todas as vítimas tinham até 14 anos. Por sua vez, o relatório do Disque 100 referente ao ano de 2019 aponta um total de 33.374 denúncias de violências físicas contra crianças e adolescentes, 8% a mais do que em 2018. Mesmo diante de um quadro crônico de subnotificação e da falta de um sistema unificado de registro de casos, o país se encontra diante de números inaceitáveis de maus tratos e agressões físicas contra crianças e adolescentes
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Com relação ao bullying, tipo de violência psicológica que ganhou destaque, cujos efeitos sobre as vítimas vêm sendo discutidos em maior profundidade nos últimos anos, há ainda menos dados disponíveis. Entretanto, estudos realizados em diferentes estados e municípios fornecem evidências sobre a dimensão do problema. Por exemplo, pesquisa conduzida pela Faculdade de Medicina na Universidade de São Paulo em 119 escolas paulistanas apontou que 29% dos estudantes entrevistados relataram ter sido vítimas de bullying no ano anterior. Além de evidenciar os impactos do bullying sobre a saúde mental das vítimas, a pesquisa encontrou ainda uma preocupante associação entre o uso de drogas e as práticas de bullying, tanto entre autores como entre vítimas
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Outra fonte de informação sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes são os registros policiais, ainda que sofram do mesmo problema de subnotificação. De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, sete a cara 10 estupros registrados no país foram praticados contra vítimas consideradas vulneráveis, ou seja, segundo a definição da Lei nº 12.015/09, vítimas menores de 14 anos de idade ou pessoas que não possam oferecer resistência ao ato. Destas, 58% ou mais de 27 mil tinham no máximo 13 anos; duas a cada 10 tinham entre 5 e 9 anos, totalizando quase nove mil vítimas nessa faixa etária. Como se sabe, os registros de violência são apenas uma pequena parcela das violações sexuais ocorridas, especialmente quando se trata de violências sofridas dentro de casa.
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O sistema socioeducativo também é cenário de inúmeras violações, constatadas e documentadas pelos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) em documento referente ao ano de 2017. Segundo o relatório do MNPCT, durante as visitas a centros socioeducativos foram colhidos relatos sobre o uso desproporcional de armamentos menos letais contra os adolescentes internados, além de práticas de isolamento e confinamento contrárias às normativas existentes sobre o tema. Ademais, segundo levantamento da Folha de São Paulo, em 2019 o sistema socioeducativo de 11 estados brasileiros padecia de problemas de superlotação, sendo que no Rio de Janeiro a ocupação registrada era de 187%
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Mesmo diante da enorme parcela de violações nunca reportadas, os casos de abuso sexual que chegam ao conhecimento das autoridades são suficientes para produzir números extremamente preocupantes. Por exemplo, o relatório do Disque 100 referente a 2019 indica que, naquele ano, o serviço recebeu 17.029 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Com relação ao perfil das vítimas dessas violações, nota-se uma acentuada vulnerabilidade com relação ao gênero, visto que em 82% das denúncias as vítimas são meninas. Metade das vítimas do sexo feminino têm entre 12 e 17 anos; entre os meninos, as denúncias se concentram em faixas etárias mais baixas. O olhar para as diferenças nos padrões de vitimização de meninos e meninas é essencial para pensar medidas preventivas adequadas a cada grupo. Das denúncias recebidas em 2019, quase a metade (45%) diziam respeito a casos de abuso sexual ocorridos na casa das vítimas e quatro a cada 10 tiveram pais ou padrastos como autores (Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, 2020).
Uma das mais importantes fontes de estatísticas da violência sexual contra crianças e adolescentes é o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. Os dados do Sinan revelam que, entre 2010 e 2019, foram notificados 135.444 estupros contra crianças e adolescentes, uma média anual de mais de 13 mil notificações. Do total de notificações: 86% foram praticados contra meninas; 36% tiveram como vítimas crianças de até nove anos de idade; 24% foram cometidos por pais, padrastos ou irmãos, percentual que sobe para 32% quando se trata de estupros contra crianças de até nove anos de idade; e em 40% dos casos a mesma violência já havia ocorrido ao menos uma outra vez.
Outra fonte de informação sobre a violência sexual contra crianças e adolescentes são os registros policiais, ainda que sofram do mesmo problema de subnotificação. De acordo com o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2019, sete a cada 10 estupros registrados no país foram praticados contra vítimas consideradas vulneráveis, ou seja, segundo a definição da Lei 12.015/09, vítimas menores de 14 anos de idade ou pessoas que não possam oferecer resistência ao ato. Destas, 58% ou mais de 27 mil tinham no máximo 13 anos; duas a cada 10 tinham entre 5 e 9 anos, totalizando quase nove mil vítimas nessa faixa etária; e 11% tinham até quatro anos. Os dados do Anuário corroboram que os casos de violência sexual contra vítimas do sexo masculino estão concentrados na infância, ao passo que a maior parte das violações contra meninas ocorrem durante a adolescência. Em relação à autoria, o levantamento indica que em 84% dos casos o autor era conhecido da vítima (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2020).
A edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública dedicada às estatísticas criminais do 1º semestre de 2020 representa uma importante fonte de informações sobre os efeitos da pandemia sobre a violência e a sua notificação no país. Entre janeiro e junho de 2020, caiu o número de boletins de ocorrência de estupros registrados, que chegaram a 17.287, contra 22.282 no mesmo período do ano anterior. As meninas foram as mais atingidas em ambos os períodos. É importante apontar que essa redução provavelmente se deve ao fato de que, dada a necessidade da imposição de medidas de distanciamento social, crianças e adolescentes passaram mais tempo em casa com seus agressores e tiveram menos oportunidades de denunciar as violências sofridas, notadamente porque não puderam frequentar as escolas, importantes locais de denúncia e identificação de sinais de violência. Ademais, os serviços da rede de proteção social também tiveram seu funcionamento prejudicado, com diminuição do número de servidores e horários de atendimento e aumento das demandas (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021).
Dados sobre as vítimas das diferentes modalidades de exploração sexual de crianças e adolescentes são escassos. O relatório do Disque 100 referente ao ano de 2019, por exemplo, não traz informações sobre denúncias de exploração sexual, mas apenas de abuso.
Em parceria com a Polícia Rodoviária Federal, a Childhood Brasil desenvolveu um levantamento dos pontos vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes nas rodovias federais brasileiras, que identificou 3.651 pontos vulneráveis entre 2019 e 2020, 470 deles classificados como críticos. Para que um ponto seja classificado como vulnerável, diversos fatores são levados em conta, como, a existência de prostituição adulta no local, a presença de crianças e adolescentes sem um responsável, a pouca iluminação ou a ausência de câmeras de segurança (Childhood Brasil, 2020).
Como esperado, a maior exposição à internet durante a pandemia elevou o número de crimes cibernéticos denunciados e registrados ao longo de 2020. Especificamente em relação à produção e veiculação de material de conteúdo sexual envolvendo crianças e adolescentes, a Central Nacional de Denúncias de Crimes Cibernéticos[3] – parceria da ONG Safernet Brasil com o Ministério Público Federal (MPF) – recebeu 98.244 notificações em 2020, contra 48.576 em 2019.
O Sinan também traz dados sobre notificações de exploração sexual contra crianças e adolescentes. Entre 2010 e 2019, houve 6.810 notificações de exploração sexual comercial contra crianças e adolescentes, quase a metade delas (3.118) contra crianças e adolescentes de 10 a 14 anos; no mesmo período, foram registradas 5.232 notificações de “pornografia infantil”, dentre as quais 52% tiveram como vítimas crianças de até nove anos.